2006-11-02

Lodo no cais e peixe na doca

Esta manhã, um grupo de pescadores barrou a entrada na lota de pesca de Esposende. Nas declarações prestadas à Antena 1, não foi fácil perceber as palavras e argumentos de um dos pescadores, talvez o líder. Dizia ele que as fanecas eram-lhe pagas a não sei quantos cêntimos, as navalheiras a outros tantos cêntimos e que ao fim de um dia de trabalho, o que arrecadava não dava para pagar os 30 euros do gasóleo. Assim não valia a pena trabalhar, concluía ele. Era, certamente, um bom pescador, mas o homem não se fazia entender e não conseguia articular um argumento. A conversa não passava de navalheiras para baixo e fanecas para cima. Baixa produtividade, pensei em primeiro lugar.

Depois lembrei-me duma intervenção realizada há escassos dias pelo ministro da agricultura, desenvolvimento rural e … pescas. Uma intervenção delicada, diplomática, a rimar com o seu bigodito de oitocentos. Fiquei muito curioso. Basicamente afirmou que não fazia sentido manter a Docapesca a funcionar no modelo actual. Balbuciou possíveis soluções que para bom entendedor não passavam de diferentes formas de privatização. Percebeu-se que havia ali algo a desmantelar.

Finalmente, mesmo sem grande experiência de ir ao mercado do peixe, ocorreu-me que nem mesmo umas sardinhas custam menos de dois euros por quilo e não me recordo de qualquer espécie a menos de cinco ou seis euros por quilo. Onde ficará a gorda, muito gorda margem que vai entre os cêntimos do pescador e o preço ao consumidor final? Fui investigar.

Para quem a relação com a Docapesca não passa de ver umas lotas na costa, comecei por constatar o seguinte pelas próprias palavras da empresa:

"A Docapesca Portos e Lotas S.A. tem a seu cargo a prestação de serviços da primeira venda de pescado em regime de exclusividade, no continente. É constituída pela Sede, em Lisboa, onde funcionam os serviços centrais e por 14 Delegações, que abrangem 20 lotas principais e 50 postos de vendagem em pequenas comunidades piscatórias. A Docapesca presta ainda um conjunto de serviços de apoio a armadores, pescadores, comerciantes de pescado e outros clientes, dos quais se salientam, aluguer de armazéns para comerciantes e armadores, entrepostos frigoríficos, mercados de 2ª venda, venda de gelo e combustíveis. É, além disso, a entidade que detém e trata os dados relativos ao pescado transaccionado nas lotas do continente."
Dito de forma mais simples, estas palavras indiciam que se trata duma empresa monopolista que controla o primeiro degrau da distribuição grossista de peixe em Portugal. Avaliando bem as palavras da própria empresa, recolhidas no seu sítio na internet, dá para perceber que além do "regime de exclusividade", a Docapesca presta um conjunto de serviços que mais não fazem do que aumentar o seu poder. Só isto permite que a empresa, mesmo fazendo parte de um país que tem abatido a sua frota pesqueira, se apresente como "a maior empresa europeia a actuar no sector das pescas, quer a nível geográfico, quer pela diversidade dos serviços prestados". É detida em 100 por cento pelo Estado e como monopólio público que é dá prejuízo.

Depois de ter concluído tudo isto, fiquei a perceber muito melhor o pescador de Esposende. Ele e os seus colegas querem uma coisa tão simples como ter a liberdade de poder vender peixe directamente ao público. Trata-se dum movimento empresarial de integração vertical a jusante (termo deveras caro para um pescador de navalheiras), visando aproximação ao consumidor final. É um movimento vedado administrativamente que Empreender tem dificuldade em aceitar. Definitivamente, parafraseando o célebre Há Lodo no Cais, é caso para dizer que (não) há peixe na doca. Siga os desmantelamento.
© Vasco Eiriz. Design by Fearne.