Conheci Vanda Lima na primeira edição do Mestrado em Gestão de Empresas da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), já lá vão alguns anos. Tinha acabado o meu doutoramento há pouco tempo e o convite da UTAD para assegurar a disciplina de Gestão Estratégica caiu como uma luva. Já tinha anteriormente leccionado em mestrados mas nesta colaboração com a UTAD era a primeira vez que leccionava num mestrado já na posse do doutoramento. Foi, além disso, uma oportunidade que não desperdicei para melhor conhecer aquelas terras simultaneamente agrestes e das mais belas e esquecidas que o país possui. Ainda por cima em pleno Outono que é quando Trás-os-Montes me atrai mais.
Não me recordo da Vanda naquele mestrado. A razão é simples; das nove sessões em que decorreu a disciplina, a Vanda apareceu em três. Incontornavelmente, isto prejudicou-a seriamente na classificação final. Não tanto pela assiduidade e por eu ser deveras reticente a atribuir boas classificações a alunos que desconheço, mas porque nestas condições é difícil ter bom desempenho numa disciplina de estratégia empresarial leccionada nos moldes que lecciono na pós-graduação. Esta circunstância deixou-me algo perplexo porque estava na posse do passado académico recente da Vanda. Atendendo ao seu registo de licenciatura, o seu desempenho deveria ter sido bem diferente para melhor. Em todo o caso, já naquela altura não estranhava que alguns alunos médios de licenciatura tivessem excelentes desempenhos na pós-graduação e alunos brilhantes de licenciatura ficassem aquém das expectativas. Para mim a Vanda tinha-se enquadrado nesta situação. Mais tarde, já não sei em que circunstâncias, fiquei a conhecer o motivo das suas ausências a Gestão Estratégica e, imagino, às restantes disciplinas. Tinha-se licenciado naquele ano, há poucos meses, e começara entretanto a trabalhar num concessionário da Fiat em Vila Real que, está-se mesmo a ver, não lhe facultava condições para frequentar o mestrado!
Da minha parte, já tinha largado os carros italianos há bastante tempo e precisamente naquela altura investi em carro novo. Recordo-me que as primeiras viagens mais longas foram a caminho de Vila Real, com a chuva e nevoeiro em que o IP4 é pródigo. Diga-se de passagem que as curvas em Trás-os-Montes sempre foram de me deixar tonto. Mesmo com viatura a estrear.
Empenhei-me naquele mestrado como me empenho em todas os cursos em que me envolvo. Julgo que foi um bom negócio para todos os envolvidos. Para a UTAD que me recrutou recém-doutorado a custos atractivos. Para a minha universidade que ficava com um terço do quinhão e começou de imediato a amortizar o investimento feito em mim. Para mim, que me permitiu conhecer recantos como Sabrosa. Ficava hospedado numa pensão modesta em Vila Real. Deitava-me e levantava-me a preparar aulas!
Quanto à relação entre a Fiat e Vanda, abundam infelizmente casos destes. Não tenho sequer dúvidas de que há não muito tempo havia alunos (e provavelmente ainda haverá) a ocultar aos seus empregadores a frequência de pós-graduações. Se ao menos o mestrado tivesse uma disciplina de Técnicas de Aumento das Vendas de Automóveis no Próximo Mês! Mas, não, não era esse o caso. Nem a UTAD, nem nenhuma universidade que se preze possui uma disciplina dessas. Se possuísse eu não teria sido o docente.
A parte escolar do mestrado terminou. Para surpresa minha aceitei orientar três dissertações. Com uma das alunas que orientava, cheguei a ter algumas reuniões e várias interacções. Ameaçou por várias vezes concluir a dissertação sobre gestão do conhecimento na indústria farmacêutica, mas com muita pena minha – e, certamente, também dela – nunca concretizou as suas ameaças. Pelo meio casou e teve uma filha, fenómeno que, estranhamente, se veio a repetir noutras orientações de outros mestrados.
Dos três casos, o mais estranho foi o duma aluna que tinha ligações, salvo erro, à Holanda. Eram ligações que nunca consegui esclarecer totalmente mas julgo que se resumiam ao facto dos seus pais serem emigrantes naquele país. Conhecendo-a da parte escolar, julgava que iria ter muitas dificuldades em concluir a dissertação. Mas, perante as suas insistências e a forma deveras positiva como traduzia os meus comentários no seu projecto de investigação, não havia razão para não a orientar. Por pouco tempo. Passados escassas semanas, desapareceu completamente. Cheguei a escrever-lhe para Mogadouro onde residia mas nunca obtive resposta.
O tema da terceira orientação que tive a meu cargo naquele mestrado foi o que mais me atraiu. Desde o início, aquele aluno não mostrou grande motivação para a dissertação. Mesmo assim apresentou um bom projecto sobre processos de fusão nas caixas de crédito agrícola. Era um tema para que despertou porque exercia funções relevantes numa caixa que estava a passar por um desses processos e porque este é incontornavelmente um tópico coberto nos meus programas. Prometia, mas passado pouco tempo, de forma cavalheiresca reconheceu que não tinha nem tempo nem predisposição para elaborar a dissertação. Nos vários contactos que mantivemos, reconheço, como disse, que sempre foi um autêntico cavalheiro. Passados uns meses, eu e a minha esposa cruzamo-nos com ele e a sua esposa num desses centros comerciais que existem à volta do Porto. Foi um misto de surpresa, mas também de satisfação, verificar que estava casado com uma namorada minha de liceu. Soltamos umas valentes risadas e pensei nas voltas que o mundo dá!
O tempo foi passando, até que em 2004, a UTAD voltou a convidar-me. Desta vez para arguir uma dissertação daquele mestrado. Era uma dissertação cujo estudo empírico decorrera no calçado, um sector que não me era desconhecido. A dissertação tinha sido orientada por Chris Gerry – professor catedrático com responsabilidades de topo na UTAD que se viria a revelar um galês deveras cortês – e intitulava-se "Capital Social e Adaptabilidade Empresarial: aprofundamento teórico-conceptual e aplicação a um cluster de calçado". A autora era a Vanda.
Guardo boas recordações daquela ida a Vila Real. Desde logo, a cortesia dos demais colegas do júri, as especificidades do sistema de avaliação da UTAD e, talvez o mais curioso de tudo, o local da prova. A prova decorreu numa sala enorme, espécie de anfiteatro. Não estava demasiada gente a assistir mas havia um detalhe que se notava de imediato. Os membros do júri ficaram sentados numa mesa na parte frontal da sala e mesmo à nossa frente estava sentada a candidata com um desnível de bem mais de um metro em relação a nós. Em todo o meu trajecto académico por várias instituições só tinha sido avaliado ou avaliador em espaços em que avaliadores e avaliados estavam no mesmo piso e por isso, mesmo estando na parte de cima, senti algum desconforto. As diferenças entre júri e candidatos eram claramente vincadas com aquele desnível tremendamente simbólico.
Não era por isto que a prova se deixaria de fazer. Decorreu com normalidade e a Vanda mostrou estar relativamente calma. Julgo que também me esforcei por isso. Sempre que participo num júri tenho por hábito verter toda a minha avaliação num relatório. Procuro fazer relatórios curtos, evitando passar meia dúzia de páginas. Habituei-me ainda a produzir uma síntese dessa avaliação em poucas linhas. Na síntese do relatório da Vanda, qual pronuncio, escrevi o seguinte:
Recordo-me de na prova ter dito à Vanda que ela tinha desenhado imensas avenidas de investigação e que no caso da sua dissertação, tratavam-se de avendidas todas elas muito largas e distintas. Procurei transmitir-lhe a ideia de que em ciência temos que nos posicionar numa dessas avenidas e aí sim, procurar descobrir-lhe os cantos. Fiz-lhe notar que numa dissertação de mestrado isto não era um verdadeiro problema, talvez fosse até uma virtude. Mas caso prosseguisse estudos de doutoramento (como julgo que poderia vir a ser o caso em virtude de ter entretanto saído da Fiat e acedido à carreira docente no Instituto Politécnico do Porto), teria que escolher uma dessas avenidas e caminhar por aí adiante. É certo que poderia vir a escolher um tema conciliador e inovador na fronteira entre não mais do que duas avenidas, mas um projecto destes seria sempre mais difícil e pouco exequível no período de tempo duma dissertação de mestrado."Estudo de natureza exploratória e descritiva sobre um tema híbrido. Não é liquido que tenha havido um "aprofundamento teórico-conceptual" do tema conforme o subtítulo da dissertação sugere. É revista literatura de áreas diversas como a sociologia económica, ciência política, economia (teoria dos custos de transacção, teoria dos jogos ou até economia regional e urbana e industrial com o conceito de distritos industriais) sem que tais contributos sejam depois enquadrados de forma explícita no domínio da gestão ou sem que a dissertação assuma um dos paradigmas como dominante no tratamento do tema. Paradoxalmente, no estudo empírico, as categorias temáticas utilizadas e a interpretação dos dados parecem destacar questões de empreendedorismo sem que estas tenham sido suficientemente vertidas na revisão da literatura. A dissertação teria ganho com um enquadramento conceptual mais preciso e delimitado. Se, por um lado, isto fragiliza a dissertação, por outro lado abre-lhe horizontes de investigação para o futuro."
Passado algum tempo enviei-lhe um artigo meu sobre redes interorganizacionais no sector do calçado que produzira através de pesquisas do meu doutoramento. Era um artigo que tinha ganho um prémio e que, dada a relação evidente com aquilo que a Vanda tinha pesquisado, pensei que ela talvez pudesse ter curiosidade em lê-lo.
Desde a prova de mestrado em 2004 nunca mais voltei a ter notícias da Vanda até meados deste ano. Desafiou-me a orientar o seu doutoramento. Conversámos, reunimos, trocámos mensagens, melhorámos documentos. Passados alguns meses a candidatura ficou pronta. A Vanda foi admitida no doutoramento e inicia agora novamente outro caminho, nesta fase ainda por largas avenidas, como é natural que seja durante os primeiros meses. Estivémos hoje a traçar o melhor caminho.