Foi uma procura incessante, a que terminou hoje com sucesso. Refiro-me à obtenção de "A Lã e a Neve", romance da autoria de Ferreira de Castro (Guimarães & C.ª, 1947). Deste autor sabia que tinha escrito o mais célebre "A Selva" que, aliás, com pena minha, nunca li. Fiquei, contudo, desperto para a leitura de "A Lã e a Neve" através de um daqueles questionários de pacotilha que surgem nos jornais, no qual Carvalho da Silva, líder da CGTP, reconhecia ter sido o romance de Ferreira de Castro que, ao retratar o movimento dos operários da Covilhã em meados do século passado, mais o influenciou. Quis ler porque sempre me interessaram contextos destes.
"[...] No começo do Verão, antes de demandar os altos da serra, ovelhas e carneiros deixavam, em poder dos donos, a sua capa de Inverno. E começava a tecelagem. O homem movia, com os pés, a tosca construção de madeira, enquanto as suas mãos iam operando o milagre de transformar a grosseira matéria em forte tecido. Constituía o acto uma indústria doméstica, que cada qual exercia em seu proveito, pois a serra não dava, nessas recuadas eras, mais do que lã e centeio[...]."
Fui procurá-lo quando tinha tempo, há alguns meses atrás em pleno período de estadia na praia. Paradoxalmente na Quinta do Lago, local que compreensivelmente não deve reunir as preferências, nem de Carvalho da Silva, nem de qualquer movimento de operários. Mas assim foi. E encontrei-o depois duma breve clarificação junto do funcionário da biblioteca municipal de Loulé que insistia em pesquisar "Alá e a Neve". Foi aí que percebi que quando um minhoto refere "a lã", um algarvio, quiçá influenciado por ascendências remotas, compreende "Alá", algo que evidentemente não retira mérito à mencionada biblioteca que muito prezo e de que sou sócio ao ponto de a frequentar bem mais do que qualquer esplanada veraneante.
Comecei a leitura e agradou-me o que li. Compreendi também porque Ferreira de Castro é considerado um neo-realista, embora, realisticamente, a minha ignorância não distinga um realista de um neo-realista. Mas como as férias eram excessivamente curtas, não consegui ir além do terceiro capítulo. Realisticamente tive que devolver o livro antes de regresso a norte.
A norte iniciei nova procura. Como tenho o vício danado de ser sócio de várias bibliotecas municipais do país comecei por uma outra biblioteca municipal. Também tinha o livro em catálogo. Mas, com pena minha, estava no depósito. "Que passasse dali a dois dias depois de trazerem o livro do depósito", disseram-me (não esqueçamos que mesmo quando são boas bibliotecas, nem por isso deixam de ser municipais). "Pois, então, que assim seja", respondi. Passaram-se uns dias e, surpresa das surpresas, o livro do depósito era uma tradução chinesa do livro que procurava. Fiquei desanimado e foi aí que compreendi porque Ferreira de Castro é, provavelmente, um dos autores portugueses mais traduzidos noutras línguas. Sim, claro, porque se até uma biblioteca municipal em Portugal tem a versão chinesa em detrimento da portuguesa, é porque estamos perante um autor internacional. Além disso, também aí confirmei a minha desconfiança proverbial nos depósitos das bibliotecas.
Desmoralizado, pensei que só um alfarrabista resolveria o meu problema pois sabia que o livro era de meados do século passado, embora existissem edições mais recentes. Mas, não. A aquisição resolveu-se através da Bertrand que descobriu um exemplar numa das suas lojas. E foi isso precisamente que aconteceu: o livro chegou-me hoje às mãos. Trata-se duma edição de 1990 com uma capa bem menos interessante do que esta. Para mim, esta é incomparavelmente mais bonita.
Mas, sabe o leitor o que acho curioso nisto tudo? É que foi precisamente hoje, no dia em que consegui obter o livro, que soube através do Barcelos Popular, um jornal também ele inclinado para o lado do proletariado, que Carvalho da Silva, natural de Viatodos, uma freguesia de Barcelos, concluiu há dias o seu doutoramento no ISCTE com uma tese sugestivamente intitulada "Centralidade do trabalho e acção colectiva: sindicalismo em tempo de globalização".
E sabe o que, em termos de coincidências, acho ainda mais curioso? O livro que tenho agora em mãos tem as páginas bastante amarelecidas, morenas mesmo, e eu próprio volto amanhã para uma praia! Acompanhado evidentemente de "A Lã e a Neve". Vá lá, desta vez para uma praia bem mais proletária.
E como não há duas sem três, sabe finalmente duma terceira feliz coincidência? Também neste momento leio "Foi Assim", uma espécie de memórias políticas do tempo em que Zita Seabra militava no PC. Com uma diferença: Zita foi no seu devido tempo bem mais realista do que Carvalho da Silva.