2010-11-03

Parque das Caldas

Uma anarquia organizada
Por Vasco Eiriz de Sousa

No Parque das Caldas de hoje vamos revisitar um artigo sobre teoria das organizações publicado em 1972. Ficaremos a compreender melhor o país e muitas das suas organizações.

O artigo intitula-se "The garbage can model of organizational theory", qualquer coisa como "O modelo do caixote do lixo na teoria organizacional" e foi publicado na revista Administrative Science Quarterly. Nele, os seus autores – Michael D. Cohen, James G. March, e Johan P. Olsen – constatam que existem organizações que actuam com uma grande variedade de escolhas. Frequentemente, estas escolhas são mal definidas. Além disso, não raras vezes, essas decisões são inconsistentes entre si e não são partilhadas pelos membros da organização. São organizações que privilegiam acções pouco claras, baseadas na tentativa-erro. Por outro lado, a forma como os seus membros actuam nessas decisões revela um envolvimento pouco persistente no tempo, sem objectivos claros.

A metáfora do caixote do lixo é utilizada pelos autores como um receptáculo em que os diferentes membros da organização colocam vários tipos de problemas e soluções à medida que estes vão sendo gerados no seu dia-a-dia. Como num caixote de lixo, também em muitas organizações há lugar a todo o tipo de ingredientes, da mais diferente natureza. Nuns casos, esses ingredientes – ou se preferirem, o lixo – possuem uma relação entre si e daí que a metáfora do eco-ponto possa ser aplicada em algumas organizações. Noutros casos, de forma muito mais comum, os ingredientes (problemas e soluções) não possuem qualquer lógica ou sentido aparente e, à semelhança duma lixeira em céu aberto, não se descortina qualquer ordem.

Este tipo de organizações – a que os autores chamam anarquia organizada – é muito comum e o melhor exemplo desta forma de tomar decisões que eles identificam é o das universidades. Em contextos como este é muito frequente que os gestores encontrem soluções para problemas inexistentes. O que é obra. De igual forma, é também muito comum que não se descortinem soluções para os verdadeiros problemas. Ora, quando assim é, alguns problemas acabam por ser resolvidos mas não através das primeiras decisões e soluções. Dito de outra forma, não se resolvem, vão-se resolvendo.

No actual contexto de Portugal, o que me parece mais interessante nesta leitura é que ela ajuda-nos a compreender um pouco melhor, não só as universidades – particularmente em momentos como o actual em que vivem um processo de adaptação a uma nova lei de governação –, mas a forma como funcionamos enquanto sociedade. E quer se goste, quer não, Portugal vive hoje numa espécie de anarquia organizada, onde parece estar claramente em falta uma visão e metas partilhadas por diferentes grupos de interesse da sociedade.

Para ilustrar isto, pensemos, por exemplo, num tema como o do novo aeroporto de Lisboa. Há quantas décadas o assunto é discutido? Quantas decisões de localização e construção foram já tomadas, anuladas e adiadas? Quantos governos ponderaram o problema? Quantos estudos foram encomendados e realizados? De que forma tem sido tratado o tema nos últimos anos? Façamos as mesmas questões para as SCUTs e para muitos outros assuntos do nosso quotidiano colectivo.

Recorrendo à nossa metáfora, dir-se-ia que estes dois temas – e muitos outros – são uma espécie de caixote de lixo em que tudo cabe: interesses, problemas, estudos, soluções, adiamentos, protagonismos, protagonistas, propostas. Uma autêntica lixeira a céu aberto.

Naturalmente, o estado caótico – ou mais rigorosamente de anarquia organizada – em que vários destes problemas caíram, é da responsabilidade, em primeiro lugar, dos governos. Mas, não nos iludamos: a longa história do aeroporto, das SCUTs e do resto é também a nossa imagem enquanto país e sociedade. Ela ilustra a forma como nos organizamos, como se tomam decisões, se gerem recursos, e se atingem resultados.

Vasco Eiriz de Sousa é editor do blogue Empreender. Parque das Caldas é uma coluna sobre temas locais.
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