Público e privado
Por Vasco Eiriz de Sousa
Quando João estacionou a viatura junto dum parquímetro, proporcionou-se uma breve troca de impressões com o "fiscal" que inspeccionava a máquina. Simpático, o tal "fiscal" explicou-lhe quanto teria que pagar. Demasiado simpático, deu ainda a entender que não colocasse mais do que dois euros porque, mesmo que passasse o tempo correspondente, não teria problemas.
A farda daquele "fiscal" era estranha. Não era um polícia municipal, mas a farda azul tinha um distintivo que fazia lembrar uma empresa de segurança. João perguntou-lhe para que entidade trabalhava porque imaginou que estivesse perante alguma concessão ou coisa parecida. Cordialmente, o "fiscal" respondeu que se tratava duma empresa municipal. Mas quando entendeu avançar explicações procurando elucidar que a empresa tinha a "parte pública e a parte privada", João ficou confuso. Pensou que não teria moedas suficientes para sustentar uma conversa clarificadora sobre as partes públicas e as partes privadas daquela entidade.
Vem isto a propósito do público e do privado. Entrou em vigor em Novembro de 2006 legislação que permite às concessionárias de auto-estradas multar os condutores faltosos no pagamento de portagens. Passaram quatro anos e a matéria está ainda em fase de regulamentação, havendo notícias de que não faltará muito tempo para a sua plena aplicação.
Numa primeira leitura, esta forma de privatização não parece ser de todo descabida. De facto, parece fazer todo o sentido que sejam as concessionárias a gerir integralmente o serviço prestado, incluindo a penalização dos faltosos.
Medidas destas levantam, contudo, questões bem mais profundas. Para abreviar, fiquemo-nos pelas auto-estradas e suscitemos só algumas dessas questões: a quem compete prestar a assistência médica ou outra em caso de acidente de viação? São as concessionárias que asseguram este serviço? E de quem é a autoridade de levantar um auto de acidente de viação? Será que as concessionárias de auto-estradas estarão também dispostas a desenvolver estas actividades e suportar os respectivos custos? E mesmo que pudessem faze-lo, seria legítimo?
E nos casos em que a própria concessionária é uma das partes interessadas num conflito com o consumidor, como não é raro suceder, que garantia tem o cidadão de que se faz justiça? Ou estarão as concessionárias só interessadas em actuar nas ocorrências em que se verifica uma perda de receitas?! E tudo o resto que só acarreta custos e despesas, fica para o Estado?!
Como explicar o paradoxo de haverem tantas e tantas actividades exercidas pelo Estado, muitas das quais parece não fazer qualquer sentido que seja ele a desenvolver e, simultaneamente, haver outras actividades em que estranhamente o Estado abdica do seu papel?
Com estas questões não se pretende advogar sobre as virtudes ou defeitos do papel do Estado. Mas há questões que parecem cada vez mais incontornáveis: quais os limites do público e do privado? O que são hoje as actividades públicas e privadas? Que fronteiras as distinguem? Este é um debate urgente e actual que nos deve preocupar a todos.
Vasco Eiriz de Sousa é editor do blogue Empreender. Parque das Caldas é uma coluna sobre temas locais.