Quando no final do século passado cheguei a Inglaterra e discutia com o meu orientador de doutoramento contextos possíveis de estudo, a sugestão que ele me fez de estudar aeroportos deixou-me estupefacto. Viajar de avião era então um fenómeno mais raro do que atualmente. E se nem hoje a generalidade das pessoas distingue uma empresa de aviação civil duma empresa de gestão de aeroportos, imagine o leitor a surpresa com que fiquei. A surpresa deu lugar à compreensão quando percebi o que se estava a passar com as infra-estruturas aeroportuárias no Reino Unido.
Passados anos, este episódio vem-me à memória porque também a privatização da ANA – Aeroportos de Portugal voltou a colocar os aeroportos como um tema importante. Aliás, frequentemente é assim que acontece: uns anos valentes depois – em alguns casos décadas, noutras ocasiões somente alguns anos – também por cá acontecem umas coisas e dá-se uma espécie de debate.
Veja-se, por exemplo, a conclusão a que chegou há dias um "observatório" da Universidade Católica Portuguesa: que fica bem mais barato adquirir as auto-estradas que estão em funcionamento recorrendo ao simpático crédito da Troika do que o actual modelo de financiamento baseado em parcerias público-privadas com taxas de remuneração do capital que envergonham alguns banqueiros. Ora, se assim é, porque é que quando estas malfadadas parcerias foram desenhadas, não se recorreu a este modelo de financiamento das obras, afinal o mais clássico deles todos?! É bom lembrar que quando as parcerias foram lançadas, o crédito era então bem mais barato e abundante! Deveria ter sido assim, não é?!
Em síntese, este exemplo mostra que não são nada raras as medidas de política pública que num momento nos são vendidas como acertadas e passada meia dúzia de anos se vêm a revelar um completo desastre.
É de recear que se possa estar a passar algo de semelhante com a privatização da ANA, a empresa que gere os aeroportos de Portugal em regime de monopólio. Não é necessária cátedra para perceber que, só por si, a privatização de um monopólio é uma manobra perigosa. Além de perigosa, pode revelar-se pouco amiga do interesse público se tiver sido dada a garantia de manutenção desse monopólio, como na prática aconteceu.
A ANA só por si não vale nada. Mas passou a valer muito com a garantia da concessão dos aeroportos por 50 anos em regime de monopólio. Por isso mesmo, ao contrário do que sucedeu com a TAP, apareceram vários compradores interessados.
A decisão foi tomada. Os media noticiaram, os comentadores teceram comentários, a oposição questionou a medida, e também o cronista regista um aviso à navegação. Quando a conta começar a chegar – seja sob a forma de taxas aeroportuárias escandalosas ou de qualquer outra forma – à boa maneira portuguesa começaremos todos a estrebuchar. Aparecerá depois um "observatório" – muito provavelmente duma universidade católica ou maçónica – a dizer que afinal de contas havia uma outra solução, brilhante, miraculosa e redentora.
Como é apanágio por estes lados, os mesmos que formularam as decisões do presente serão também eles que daqui a uns anos dirão que afinal havia, ou antes, há uma alternativa bem melhor. Ou seja, hoje arranjam uma solução e com essa solução resolvem meio problema. Ao mesmo tempo, criam um problema maior para justificar novas soluções. Mais tarde, de forma novamente brilhante, arranjam uma outra solução para problema e meio (o meio problema original que ficou por resolver mais o novo problema que foi criado com a solução). E assim, sucessivamente, qual pescadinha de rabo na boca, se vão criando soluções para problemas que se vão agravando com novas soluções.
Ora, a privatização da ANA pode ter resolvido meio problema e criado um problema maior. Para o qual, obviamente iremos necessitar duma solução.
Artigo publicado no Jornal de Barcelos, 9 de janeiro de 2013, p. 22 [PDF]